Melancolia

O homem é o lobo do homem?

Melancolia é um passo para o lado na quadrilha artística de Lars Von Trier. Se sua fama de marqueteiro e sádico precede seus filmes, para assistir suas novas obras é preciso, para quem tenha paciência ou fé no homem, deixar seu preconceito (literalmente, um conceito formado por tantos filmes anteriores) do lado de fora da sala de cinema. Se, por um lado, chega a ser compreensível querer evitar um novo filme seu e isso, diga-se de passagem, é perfeitamente legítimo, por outro lado, para quem assume a empreitada, é preciso tomar o filme como nova obra independente também. Se comprou a pipoca e entrou na sessão, o importante é tentar compreender o outro lado, mais uma vez. Uma carreira artística, seja ela qual for, geralmente é povoada de altos e baixos, surpresas e contradições e o passo adentro à tela é sempre uma nova imersão num novo mundo.

Dito isto, chegamos então, ao que importa: o filme. Depois do resumo da ópera nos primeiros minutos, temos a primeira parte centrada na personagem de Justine (Kirsten Dunst). Ela, ainda vestida de noiva, chega a sua festa de casamento. Lá descobrimos, talvez não nessa ordem, que seu marido é um bobão sem atitude assertivas; a mãe, uma pedante sem papas na língua que se acha acima dos mundanos ritos e tradições dos reles mortais; o pai, um infanto-idoso fujão de suas responsabilidades; e seu chefe, o clichê publicitário-capitalista-perverso. Claro, temos sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg) que faz de tudo para conceber o dia mais feliz da vida de Justine, com a ajuda de seu marido milionário. Apesar de tanta negatividade ao seu redor (singularidades das quais ela já devia estar ambientada), tudo parece querer confluir para um dia especial em sua vida. De alguma forma, ela não consegue alcançar a oferenda da felicidade. De alguma forma, e isso será eternamente inexplicável, ela se sente deslocada de seu entorno e nunca saberá por que.

Na prática, apenas na segunda parte, capítulo centrado em Claire, que Justine se mostrará, de fato, melancólica. Ainda assim, como o próprio estado depressivo indica, sem razões específicas. Chegamos a uma interessante recorrência temática do cinema contemporâneo onde a personagem principal, quando não isolada fisicamente do mundo, se sente só, mesmo convivendo com vários outros em cena (quando foi que todos começaram a sentir-se únicos em suas próprias solidões?). Não há vontade de construção comunitária, pois ela já se engendra como ruína. Mas nem a percepção de sua ausência ou inutilidade nos acresce ou educa pois, com Lars Von Trier, chega-se ainda mais no fundo do poço. Nem mesmo há descoberta no outro, pois ele não mais se mostra revelação de nada. Não há incomunicabilidade se não há esperança de se comunicar. Não há fé no diálogo sem a crença de que o outro se mostre minimamente construtivo para alguma coisa. A melancolia de Justine é o auto-reflexo de um criador que, a essa altura, não consegue propor nada além do fim do mundo, pois sem o homem, sobra o nada.

Não à toa, na segunda parte, ocorre a inversão de ânimos das duas protagonistas. Claire, que antes tentava proporcionar alegria à irmã e agora, ao menos, um mínimo de conforto em sua depressão, aos poucos começa a se desesperar com a consciência do fim. Justine, paralelamente, vai se soerguendo e se tornando serena com a chegada cada vez mais próxima da colisão dos planetas. Por essa lógica básica, percebe-se estampado na dicotomia capitular quase um trunfo no modo de ser de Justine – ao menos, ela está preparada para o pior. Estando preparada, consegue encarar o nada, morrer tranqüila e até amenizar o sofrimento daquele que não está a par da situação, o filho inocente de Claire.

A recusa em acreditar na idéia platônica do bem (o homem nasce com a tendência a fazer o bem), para se fundar em excertos pontuais freudianos*, já vem de outros carnavais. Isso, sejamos justos, mesmo que contrários, não é necessariamente um problema. O homem ser naturalmente bom ou ruim não é algo dado ou que possa ser apreendido cientificamente. É questão de fé ou no máximo um empirismo tropo. No caso da religião de Melancolia, existe a forte inclinação do espírito de discordar dos residentes desta terra, sem esperanças de um reparo (pois é um problema de natureza imanente), e por isso mesmo, a solução se mostra pela preparação para a mais alta solidão imaginável – o próprio nada imaterial. Logo, se sou independente do outro,  a morte do mundo pode vir de forma serena. Se existe um problema em tal fé, não é sua convicção mas sua impossibilidade de convivência com outras crenças. Lars Von Trier, assim como Justine, podem estar preparados para o fim do mundo, mas esperando isso acontecer impossibilitam a discordância alheia.

Para não levantar tanto a bola com um final tão impactante (afinal, falem bem ou falem mal…), além de todas as concepções espúrias, o passo pro lado na dança da obra é no sentido de nem ao menos sofrermos um grande ou qualquer impacto com o filme (de novo, pro bem ou pro mal). Sua mise-en-scène costumaz (e não seria maquinal?) de câmera nervosa, dessa vez, num cenário quase hollywoodiano de tão suntuoso, mais parece querer nos acordar de um sono provocado pela descrença do diretor não só no homem em geral, mas nos próprios personagens, que mais parecem transliterações maniqueístas de roteiro. Se lembrarmos que a idéia inicial era mergulhar no romantismo alemão, através de um determinado estado de espírito (alcançar um estado de espírito parece hoje o que de mais recorrente o cinema contemporâneo atesta buscar, substituindo o velho desejo de contar uma estória), perceberemos que, tão comum quanto apresentar uma sensação fugidia, é ver ela escapar do próprio filme. Se existem sensações indizíveis, quem falou que seria fácil transmutá-las para o cinema? O erro do diretor aqui parece ser o de pôr em cena as mesmas elaborações formais de sempre para se chegar a um novo estatuto cinematográfico. Com os mesmos limões, só é possível novas limonadas a partir de um ingrediente novo, ou por uma outra mistura. Claire, construída de maneira rasa e simplificada, não consegue nem, ao menos, auferir-nos a velha compaixão (ao contrário do que acontecia com a personagem da Bjork, em Dançando no Escuro), nem mesmo ela sendo uma mãe à beira da morte. É tudo tão frio, frígido e isolado de qualquer resquício humano além-bolha-do-jardim-da-mansão, que nem através do sentimento mais compartilhado da história da humanidade – o medo da morte – Lars Von Trier consegue criar qualquer identificação. Pensando bem, faz sentido, afinal, para ele, é preciso estar só para estar preparado para o dia final.

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* A idéia tese de  “O Mal estar da civilização”, por exemplo, se funde no princípio de que “os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo”


3 respostas para “Melancolia

  • Livia

    Discordo! Todo o seu primeiro parágrafo só serviu pra provar que vc entrou na sala cheio de pré-conceitos e não se deixou levar pela experiência isolada do filme. Hehehehe =P

    • Fabian Cantieri

      Lívia,

      Tentando me esclarecer – acho justo você, depois de não gostar de um, dois sete filmes de um diretor, não querer mais ver um filme do cara (é preciso haver um método de seleção próprio), mas se entrou (por vontade própria!) na sala é pra se molhar. Aí, realmente acredito que se deva jogar o preconceito pro lado, pra tentar minimamente curtir ou entender o que está por vir. Sempre tenho expectativas quando sento a bunda na cadeira de um cinema. Às vezes ela é morta aos cinco minutos, mas ela sempre existe.

  • Película Criativa

    Melancolia é o tipo de filme que só Lars Von Trier consegue fazer. Para mim, ele sempre se destacou com sua estética inspirada no Dogma 95.

    O que mais esperar da sua trilogia da depressão? Apesar de gostar de Melancolia, acho a proposta de O Anticristo mais competente.

    Parabéns pelo blog, já estou seguindo.

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