O curta de 100 milhões

Na minha opinião, uma das principais dificuldades enfrentadas pelos aspirantes a cineasta é o desconhecimento de um dos formatos mais importantes para quem está no início da carreira: o curta-metragem. Se assistem (assistimos) a muitos ou poucos curtas, não importa: na maioria esmagadora dos casos, a principal referência continua sendo o longa. Por um motivo semelhante, me parece, o cenário audiovisual contemporâneo oferece um variado leque de caminhos que passam longe das salas de cinema, mas o que, no fim das contas, move boa parte dos realizadores ainda é o desejo de promover aquele momento mágico que nos tocou em algum momento da infância, sentados ali, no chão de um multiplex superlotado, assistindo a algum filme seminal de Hollywood que hoje somos intimados a renegar. Mas, voltemos aos curtas, que até podem ser exibidos em salas de projeção – ainda que num caráter de exceção chamado festival –, mas têm uma diferença fundamental em relação aos longas: são, como diz o nome, mais curtos. A dificuldade a que me refiro é, no fundo, a mesma que produziu este parágrafo mastodôntico e me impediu de escrever, apenas e tão-somente:

Na minha opinião, o primeiro ato da refilmagem de “Bravura Indômita”, dos irmãos Coen, é uma aula de curta-metragem.

O cinema de longa-metragem costuma se caracterizar por uma série de peripécias, reviravoltas e “turning points” cujas relações de causa e efeito não precisam (nem devem) ser tão prolixas como eu, mas podem se dar ao luxo de construir, pouco a pouco, o que quer que pretendam construir. Vide “Encontros e Desencontros”, de Sofia Coppola, por exemplo: o longa traz um acúmulo de esquetes divertidas, mas será que o relativo consenso sobre a qualidade do filme seria o mesmo não fossem o monólogo existencialista de Bill Murray ou o famoso sussurro ao pé do ouvido, que só acontecem na reta final da narrativa? A imersão num curta-metragem me parece mais difícil, tais, por exemplo, as exigências que se fazem em termos de concisão e intensidade da dramaturgia – estou falando de filmes essencialmente narrativos, claro; se estivesse falando de videoarte, a relação seria inversa.

O primeiro segmento de “Bravura Indômita” apresenta, sem delongas, um ponto de partida genial: no Velho Oeste, uma menina de 14 anos quer contratar um homem da lei para vingar, na mesma moeda, o assassino de seu pai. Primeiro ponto para o filme: a premissa, em si, já é uma obra de arte. Se não houvesse nenhuma ação, apenas a apresentação desse desejo de Mattie Ross – o nome da contratante – já seria, por si só, uma criação ímpar da mente humana, capaz de nos fazer sentir e pensar a perda, a vingança e a violência a partir de um ponto de vista novo. Afinal, estamos falando de uma menina de 14 anos num contexto tão avesso a esse tipo de comportamento, por uma menina de 14 anos, como o cinema de faroeste. Se a própria premissa já faz isso, sem nenhum diálogo expositivo, é porque seu apelo é imediato e universal, e ela própria já poderia ser uma obra de arte – o crédito, aqui, vai principalmente para Charles Portis, o autor do livro em que se baseia ao filme, mas também ao produtor, Scott Rudin, e aos irmãos-diretores, que escolheram e abraçaram o projeto.

A trama desse primeiro ato não consiste, obviamente, em dar cabo à vingança, e sim nas negociações para viabilizá-la. Mattie vai atrás de seu funcionário e do dinheiro para pagá-lo, com um tino capitalista irrepreensível. É quando os irmãos Coen são mais irmãos Coen e se divertem com os diálogos. A jornada da protagonista, nesse segmento, é composta, portanto, de diversas peripécias, a saber, cada negociação, além das noites em claro que a menina passa na pensão, marcadas por um humor meio pastelão, meio inglês. Com 10, 15 minutos de filme, a imersão já é grande. Até que, finalmente, Mattie encontra e contrata seu homem, a figura, essa sim mais típica do faroeste, de Cogburn. Mas faz uma exigência: ela terá que acompanhá-lo na missão, afinal, como patroa malandra que é, não vai permitir que seu contratado simplesmente pegue o dinheiro e fuja do serviço.

Para seguir viagem, Mattie vai atrás de um cavalo, que logo batiza de Little Blacky. É um ponto crucial do filme – dos filmes: o curta e o longa – porque se trata do primeiro momento mais forte em que a sisudez incomum da adolescente vingativa e boa de lábia dá lugar a algo que ainda não havíamos visto: a infância. A imersão na história cresce, para descobrirmos em seguida o que já era previsível: Cogburn a traiu, fugiu com o dinheiro e até vai atrás de seu alvo, mas apenas para ajudar um Texas Ranger a prendê-lo por outro crime – hipótese que a menina rejeita; para que seu pai seja vingado, o sujeito tem que morrer pelas mãos de seu funcionário.

Chegamos ao clímax do primeiro ato, em que ela encontra Cogburn e o Texas Ranger do outro lado de um rio, a caminho da nova e inaceitável missão. Os Coen filmam esse rio como algo intransponível, justamente para que Mattie o transponha, heroicamente, com seu cavalo (nossa primeira conexão emocional) submerso até o pescoço. A música sobe, como novamente era de se esperar, ela chega a outra margem, e, pronto, está encaminhado nosso desfecho. A conclusão é o diálogo em que os dois adultos tentam se livrar, pela última vez, da garota, já sem muitas esperanças. Eles sabem que ela conquistou esse direito ao atravessar o rio. Nós também sabemos – prescindindo mais uma vez de qualquer exposição. Atravessamos o rio junto com ela. Meia hora de filme bastou para construir identificação, costurar peripécias, atingir um ápice dramático e chegar a uma conclusão: aquela menina de 14 anos, que nos mostra o absurdo da vingança, merece essa mesma vingança. Uma conclusão tão forte quanto o ponto de partida.

Meia hora pode ser um pouco mais do que um curta-metragem – o dobro, se o padrão são os editais do nosso Ministério da Cultura. A questão, aqui, não é de minutagem. É, um pouco, a minha crença de que os irmãos Coen fizeram um grande filme que faturou mais de 100 milhões de dólares, mas que poderia ser uma obra-prima ainda mais rentável se o segundo ato fizesse frente à toada inicial. É, também, a minha impressão de que, dentro de uma narrativa longa, há uma narrativa curta a ser observada com especial atenção. É, por último, o perigoso mas atraente exercício de liberdade a que a internet nos convida, e que eu aceitei ao começar a escrever neste blog. No fundo, esse monte de linhas pode não passar de um insight furado, que não resistiria aos contra-argumentos dos amigos no Baixo Botafogo, na saída do cinema.

O que, por outro lado, pode levar a uma conclusão tão edificante quanto óbvia, mas ainda assim uma conclusão: curtas-metragens não devem ser estudados jamais, pois é justamente desse tiro no escuro, desse mergulho num rio cuja profundidade não se conhece, que talvez saiam cinemas, de fato, novos.


3 respostas para “O curta de 100 milhões

  • ossegredosdericardodarin

    Lg,
    gostei muito da crítica. Quero muito ver o filme, em especial o “curta metragem” inicial. Até hoje não vi “Fargo” inteiro, que um dia você me emprestou. Não tenho a menor vontade de acabar de vê-lo, na realidade. Mas gostei de “Onde os Fracos não têm vez”, eu acho… “Bravura Indômita” é tão violento quanto?
    Boas escritas por esse blog e não deixe de divulgar para os amigos a cada novo texto escrito.
    😉 inté a próximo sessão!

  • Clarice

    Lg,
    gostei muito da crítica. Quero muito ver o filme, em especial o “curta metragem” inicial. Até hoje não vi “Fargo” inteiro, que um dia você me emprestou. Não tenho a menor vontade de acabar de vê-lo, na realidade. Mas gostei de “Onde os Fracos não têm vez”, eu acho… “Bravura Indômita” é tão violento quanto?
    Boas escritas por esse blog e não deixe de divulgar para os amigos a cada novo texto escrito.
    😉 inté a próximo sessão!

  • Ana Melo

    LG,

    Parabéns pela estreia no blog! Vou assistir assim que acabar a minha saga com os filmes do Futura. 🙂

    Beijo!

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